Por Amilcar Fagundes Freitas Macedo e Silvia Regina Becker Pinto
“A costela de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e não acordado, para mostrar o quão dificultosamente se tira aos homens e, ainda, com quanta suavidade se deve tirar para o seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e a propagação do gênero humano. Mas repurga tanto aos homens deixar arrancar de si aquilo que lhes tem convertido em carne e osso, ainda que seja para o bem de sua casa e de seus filhos. Por isso traçou Deus tirar a costela de Adão não acordado, mas dormindo. Adormeceu-lhes os sentidos para lhe escusar o sentimento. Com tanta suavidade como essa se há de tirar aos homens o que é necessário para a sua conservação da Pátria: tire-se a carne, tire-se o sangue, tire-se os ossos, que assim é a razão que seja. Mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a costela de Adão, mas ele não viu nem sentiu e, se soube, foi apenas por revelação...”
O trecho acima faz parte do sermão proferido em 14 de setembro de 1642, perante o Rei e Cortes Portuguesas, pelo Padre Antônio Vieira, por ocasião da criação de imposto (a décima militar) que se destinaria a financiar a defesa da sociedade, naquele momento. Representou uma bela comparação que condensa um sentido de igualdade, além de ilustrar que a perda, em razão do imposto, ilustrava a necessidade da contribuição de cada um para com todos e representaria, ao final, um ganho em termos de segurança coletiva.
Pois, a propósito disso, o que temos visto nos últimos anos em todo o País é um aumento vertiginoso nos índices de criminalidade, especialmente os homicídios. O Brasil é o 13º colocado no mundo com uma taxa de 29,68 homicídios para cada cem mil habitantes. No ranking das 50 cidades mais violentas do planeta, 15 estão no Brasil. Esta semana a imprensa divulgou que cresceu 18% o índice de homicídios na cidade de São Paulo, onde os ataques contra policiais são quase diários. Em Santa Catarina, em pouco mais de um mês, mais de cem ataques com incêndios de ônibus (coletivos), caminhões e casas (até mesmo alguns prédios pertencentes ao poder público) foram perpetrados por bandidos sob o comando de presidiários, o que redundou na convocação da Força Nacional de Segurança, por parte do Governo Estadual, e na transferência de vários líderes de presos para presídios federais. Em contrapartida, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público, menos de 8% dos homicídios ocorridos no Brasil são investigados pela polícia.
Em nosso Estado, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública divulgados esta semana, o aumento no número de homicídios foi de mais de 17%, em comparação com o ano anterior. Aliás, houve um aumento em quase todos os crimes, exceto alguns como furto de veículos. Mas isso não se deu por obra e ações dos órgãos de segurança, senão porque os novos veículos que chegam ao mercado têm chaves de ignição codificadas, impedindo a utilização de “mixas”.
No entanto, jornal de grande circulação no Estado estampou matéria de duas páginas, ao final do ano passado, em reportagem especial, dando ênfase às mais de 314 operações (com base no velho CPP: MBA + prisão temporária) da Polícia Civil gaúcha, com centenas de viaturas e policiais, certamente com grande gasto para o contribuinte, sendo que o resultado efetivo não foi o que se desejava, haja vista o noticiado aumento da criminalidade. Postos de gasolina são assaltados diariamente há quase dois meses sem que ninguém sequer tenha sido preso até agora. Isso me faz lembrar da minha querida Bagé, onde se fala muito na “tosquia de porco, em que há muito grito e pouca lã”.
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, além de antecipar o aumento da insegurança em nosso Estado, revelou que o Rio Grande do Sul foi o estado da federação que mais reduziu seus gastos em segurança pública em 2011, em comparação com 2010 (28,42%), o que, em última análise, justifica, em parte, o aumento da criminalidade. Disse o Ministro da Justiça, Sr. José Eduardo Cardozo, que o que falta é gestão dos recursos. Assim, ou em nosso Estado não há uma política-programa de segurança pública (o que particularmente não acreditamos) ou há e os gestores encarregados não estão preparados para colocá-la em prática.
Parece que ao contrário do que preconizou PADRE VIEIRA, aqui, neste Brasil, os tributos diretos e indiretos nos são arrancados sem qualquer anestesia fiscal, a sangue frio e, embora financiemos, todos, os custos financeiros públicos de nossos direitos (por meio de impostos diretos e indiretos), o que temos recebido do Estado? Será que esse financiamento privado da máquina pública só serve para custear a própria sobrevivência do Estado e àqueles ligados ao seu funcionamento democrático (sufrágio/voto)? Se é isso, por que precisamos dele? Só como um estímulo indisfarçável à corrupção?”
Ora, o mínimo que é a vida e a integridade biopsíquica das pessoas – e não só de delinquentes – precisa ser concretizado pelo Estado, em todos os níveis de poder, sob pena dele não se justificar: que peça as contas, passe a régua e se demita, porque, se o que está acontecendo em São Paulo, no Nordeste, em Santa Catarina e também na Província de São Pedro não é uma guerra e, por si só, um absurdo, pois não há guerra justa, então já não compreendemos mais nada!
Nesse ambiente, ainda há quem ouse (com muita cara de pau, evidentemente) negar ao Ministério Público poder investigatório e quem legitime mudanças legislativas tendentes a favorecer marginais, ampliando-lhes direitos, sem lhes impor nenhum dever. Não nos surpreenderá que, para resolver o problema dos celulares, por exemplo, nos estabelecimentos prisionais, seja a prática admitida como comum e permitida, em nome dos direitos humanos, solução genérica que serve para legitimar todo o tipo de absurdos, menos para pensar na pessoa necessariamente imbricada numa coletividade, perante a qual tem deveres autônomos e deveres correlatos dos direitos fundamentais dos outros.
Demais disso, a menção à segurança, como direito fundamental social, remete-nos à ideia de que o Estado não tem apenas a missão política, mas, sobretudo, o dever jurídico de agir para proteger as pessoas pela violação dos seus direitos fundamentais praticados por terceiros, até porque o Estado detém, em princípio, o monopólio do uso da força, devendo isso, também, ser invocado para fundamentar o dever estatal de proteção do direito fundamental à segurança.
Vamos dizer não a todas as reformas penais e processuais penais que não atendam ao nosso interesse comum de uma sociedade correlacionada por vínculos de uma mesma dignidade humana. Vamos dizer não a reformas politiqueiras, às maquiagens, engendradas sob uma violência e uma criminalidade já longínquas desta que vivemos hoje concretamente, para a qual o Estado, em sua estrutura, já é por demais impotente.
Recuperar esse Estado (que somos nós) é retomar a ideia de que toda pessoa – até os delinquentes -, pelo simples fato de sê-lo, tem deveres; é impor a luta do bem sobre o mal, ou seja, jamais conferir primazia ao mal e deixá-lo espalhar seu fel, sua dor e seu odor sobre pessoas inocentes e que sofrem, sofrem muito, sofrem o inexprimível, o inimaginável, o inaceitável, sendo inadmissível ficarmos calados diante desse estado de coisas, especialmente quando o Estado, na sua conformação atual, quando faz, faz muito pouco ou quase nada...embora nos cobre por quase tudo.
Pensemos muito sobre um Estado que se agigantou, especialmente na carga fiscal, e que, em termos de retorno, em termos de assegurar direitos básicos (como a vida e a integridade física das pessoas, da coletividade) não passa de puro invólucro, um Estado sem substância, que já não quer mais se ocupar de pessoas em um ambiente coletivo, um Estado do qual nunca fomos, efetivamente, donos, já que até nossa vontade, na democracia representativa, teve preço e foi vendida!
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NOTA DO EDITOR: Achei por bem publicar este artigo de autoria de membros do MP, os quais situam com grande inteligência e perspicácia peculiar as agruras por que passa a massiva maioria da população, do nosso RS e do Brasil como um todo, frente a desenfreada escalada da violência e criminalidade. Este espaço tem abordado o assunto criminalidade, sempre com base em fatos, no sentido de buscar atilar e provocar respostas do poder público, porém a inanição é preocupante, a falta de políticas sérias, duradouras, que busquem uma solução estrutural dos problemas da segurança pública simplesmente inexistem, e isto sem dúvida é um fator que colabora para o recrudescimento dos delitos. É bom não esquecer: no início do ano passado, o número de homicídios já dava mostras de alta, o que fez o governo? Determinou uma força tarefa dos órgãos policiais, diga-se de passagem efetivos remanejados de cidades do interior, para exercer suas funções em municípios da Região Metropolitana. O que disse eu neste espaço? Era uma solução simplista, amadora que não levaria a lugar nenhum.É a lógica, atitudes semelhantes já foram adotadas em outros governos e à semelhança não deram nenhum resultado eficaz!!!
SEGURANÇA PÚBLICA se faz com políticas sérias, tipo investimento em recursos humanos e materiais. Se faz buscando a reforma de nossos embolorados CP e CPP, cujos projetos dormitam nos escaninhos do Congresso Nacional. Se faz investindo em casas prisionais modernas, onde os presos não tenham à sua disposição sexo, drogas, celulares e claro muito rock and roll !!!
Esperemos que, não em prazo muito longo, um governo sério ponha fim nos numerosos escândalos de corrupção e direcione recursos realmente expressivos para a saúde, educação e segurança pública, pois estes são os principais eixos a ser atendidos na busca de desenvolvimento e um mínimo de cidadania para a sofrida população brasileira.
Enquanto não surge o messias, no caso um governo sério, vamos sobrevivendo, um dia após o outro, entrincheirados em nossas casas, atrás de grades e parafernálias eletrônicas rezando por nossos ente queridos que saem para a rua sem saber se retornarão ilesos.